Chechénia: um caso isolado ou o espelho de uma realidade?
Em abril, Ramzan Kadyrov, Presidente da Chechénia, declarou: “Vou aniquilar a população gay nas próximas semanas”. Desde aí, a intolerância tem vindo a aumentar, bem como a constante violação de vários direitos humanos e a condenação da simples existência da homossexualidade.
Um mês depois, a 17 de maio, celebra-se o Dia Internacional Contra a Homofobia e a Transfobia e não haveria contexto melhor para conversar com João Miguel, membro do grupo Um Ativismo Por Dia e com Gustavo Briz, antigo Presidente da rede ex aequo: tentámos esclarecer as nossas e as tuas dúvidas!
A Rússia pode ser tudo menos agradável para os cidadãos e as cidadãs LGBT e a Chechénia, território integrante do país, não é exceção. Quando, em março, dois apresentadores de televisão desapareceram misteriosamente, o jornal subversivo ao regime, Novaya Gazeta, iniciou uma investigação e chegou a uma conclusão: as autoridades chechenas haviam começado a perseguir, torturar e matar homens homossexuais. No entanto, o governo checheno nega os relatos, afirmando que são “mentiras” e garantindo que na região não existem homossexuais.
Curiosamente a Duma, a câmara baixa do parlamento russo, aprovou em 2013 uma lei que permite a aplicação de multas e a pena de prisão até 90 dias a quem promover mensagens de cariz homossexual a menores de idade. Num país onde a homossexualidade constitui uma afronta aos valores enraizados na mentalidade popular, a jornalista que avançou com a notícia de que existiam “campos de concentração para homossexuais” na Chechénia, Elena Milashina, teve de parar de escrever e esconder-se.
O verbo esconder é bastante familiar a quem sente que não se encaixa na sociedade, nas normas que se encontram estabelecidas, como por exemplo, Gustavo Briz, que nos confessou: “Por mais difícil que tenha sido crescer sendo gay, com toda a homofobia e o machismo que me rodeavam, pude ser quem era, sempre tive muita liberdade na minha infância para brincar com o que me apetecia, mesmo não sendo o que seria expectável para um rapaz, e assim pude crescer com autoestima e ferramentas para perceber que o que me diziam ser um problema meu – ser gay – era na realidade um problema dos outros. Assim, quando tropecei na rede ex aequo e no Projeto Educação LGBTI, dei por mim a ir a escolas de norte a sul do país, e percebi realmente o quão privilegiado era: estava a dar a cara, sem receio algum, sem medo”, estando em sintonia com João Miguel, que reconhece o mérito das iniciativas da ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero): “Reveste-se de pioneirismo e reconhecimento da luta contra a homofobia. Nos últimos anos, parece abraçar cada vez mais a luta queer (palavra usada para designar aqueles e aquelas que não seguem o padrão da heterossexualidade; o termo é usado para representar gays, lésbicas, bissexuais e, frequentemente, também as pessoas transgénero ou transexuais) ou seja, uma luta que abrange todas as pessoas não cisheteronormativas”.
As outras ocorrências
Para João Miguel, há a falta de um serviço público de apoio às pessoas queer, que a ILGA combateu com a criação da linha LGBT. Contudo, o ativista acrescenta: “Infelizmente nem sempre Portugal foi um país lgbtfriendly e ainda hoje tem muito para caminhar. Veja-se o que se passou com Gisberta, uma transexual barbaramente morta e a quem a comunicação social demorou muito a prestar a devida atenção, respeitar a sua identidade de género e perceber as motivações transfóbicas”, referindo que o Parlamento negou os direitos humanos a pessoas queer durante décadas, algo que só foi alcançado a custo de ativismo puro e duro. Já o mesmo não se pode dizer dos 73 países onde a homossexualidade é condenada e dos 13 onde a mesma conduz a pena de morte, como a Arábia Saudita.
No entendimento de João Miguel, estes e outros atentados à liberdade devem-se à falta de democracia e não estão relacionados com o facto de um país ser mais ou menos desenvolvido, como explicita: “Naturalmente, a democracia não floresce quando há guerra, exploração, pobreza ou injusta redistribuição da riqueza. É preciso que as pessoas tenham dignidade e poder para que as comunidades em que estão inseridas se tornem inclusivas. A Chechénia caiu nas mãos do tirano Putin e de movimentos fundamentalistas, que não são islâmicos, mas usam fundamentos religiosos com o objetivo de oprimir; está inserida na federação russa que criminaliza, na teoria, a perseguição de pessoas homossexuais, embora tenha leis extremamente homofóbicas. Nesta medida é ilegal, na teoria, a perseguição de homossexuais na Chechénia, que é a cristalização e um extremar de tudo o que se passa”.
Na ótica de Gustavo Briz, que já presidiu a rede ex aequo – associação que se autodescreve como apoiante de jovens lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos em Portugal, e informa relativamente às questões da orientação sexual e identidade e expressão de género – a homobitransfobia está muito enraizada na sociedade portuguesa: “O machismo continua presente duma forma transversal em vários sectores, e este afeta não somente as mulheres, mas também os homens ao impor-lhes um modelo de masculinidade que muitas vezes é destruidor. Das microagressões, aos insultos ubíquos, o associar ser-se feminino a algo fraco, a um defeito, continua muito presente” e reforça: “Mas falta tudo o resto: criarmos uma sociedade onde a orientação sexual, a identidade e a expressão de género deixem de ser causas para o sofrimento, o insulto ou qualquer preocupação. Uma sociedade onde os papéis de género são flexíveis, onde ser-se homem ou mulher não é um argumento pré-definido e estanque. Já evoluímos muitos, mas ainda falta muito.”
O caso português
Segundo João Miguel, membro do grupo Um Ativismo Por Dia, “que visa o fim de estruturas hierárquicas e opressoras” e constitui um movimento interseccional e apartidário, a ILGA deu um grande passo no serviço público de apoio às pessoas queer com a criação da linha LGBT, mas “infelizmente nem sempre Portugal foi um país lgbtfriendly e ainda hoje tem muito para caminhar. Nesta medida, as pessoas LGBT passaram por situações degradantes para os Direitos Humanos, veja-se o que se passou com Gisberta, uma transexual barbaramente morta à qual a comunicação social demorou muito para respeitar a sua identidade de género e perceber as motivações transfóbicas”. É igualmente equilibrado na sua opinião, balançando os pontos negativos com os avanços legislativos: “Temos agora umas das legislações mais respeitadoras dos direitos humanos. Embora haja muita queerfobia, tal como há muito racismo, machismo etc…, está presente a ideia de que a discriminação é reprovável e inaceitável. As pessoas queer estão mais empoderadas, o que as leva a conseguirem-se defender e ter mais visibilidade. Ainda assim, excetuando o Porto e Lisboa, há ainda muita opressão. Há também casos de violência, como o que aconteceu recentemente a Dária, Daniel e outro amigos e amigas deles, que foram violentamente agredidos verbal e fisicamente num ataque homofóbico” e conclui: “A homofobia pode afetar qualquer pessoa, Dária assume-se como heterossexual e também foi agredida durante o crime de ódio”.
A seu turno, Gustavo Briz, aborda a presença da rede ex aequo na manifestação em frente da embaixada da Rússia, realizada no passado dia 18 de abril: “Estamos a par das movimentações que estão a ser feitas pela Europa para acompanhar esta situação, no entanto, não existe ainda uma estratégia concertada e tampouco um plano de ação definido. Para já, estamos a tentar trazer o máximo de informação à luz do dia. Existem também petições a circular para exigir que os governos façam pressão sobre Moscovo para reconhecer as atrocidades e atuar”, diz, evocando a influência portuguesa naquele que se espera que seja o fim do pesadelo checheno, e remata: “Mas isto são apenas pequenos passos. Falta tudo o resto. Tirar estas pessoas de lá, criar condições para receber pedidos de asilo”.
Que caminho traçar a partir daqui?
Atualmente, existem três prisões para homossexuais na Chechénia: duas em Groznym, a capital chechena, e uma em Argún.
Um jovem ex-prisioneiro de um campo de concentração checheno, cujo nome fictício é Adam, descreveu ao jornal The Guardian que foi atraído para uma das prisões de homossexuais da Chechénia por um conhecido e que, lá, foi levado para uma cela por polícias que o espancavam por turnos: a ele e a mais 30 pessoas.
A sociedade chechena é maioritariamente conservadora e homofóbica. É certo que a Chechénia é governada por Kadyrov, um líder autoritário que tem a sua própria milícia privada e é cegamente leal ao Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Num comunicado, o porta-voz de Kadyrov, Alvi Karimov, declarou que os relatos de detenções não passam de “mentiras” e afirmou que os homossexuais “simplesmente não existem na Chechénia”, algo que é preocupante pelo facto de demonstrar não ter a mínima noção da realidade ou de a desejar encapsular de forma estúpida e cruel. Acrescentou ainda: “Se tais pessoas existissem no país, não teríamos que nos preocupar com elas, já que os seus familiares os teriam enviado para outro país e elas nunca mais voltariam”.
Descomplicador:
O Presidente checheno Kadyrov é descrito como “o profissional do genocídio” por uns e como “o organizador de campos de torturas com intenção de extermínio dos homossexuais” para outros. Já foi apresentada uma queixa contra Kadyrov no Tribunal Penal Internacional e o Panorama decidiu analisar o contexto da suposta aniquilação da população gay que o Presidente pretende realizar.